O sabor azedo da maçã e nossos eternos desterros

Giovani Miguez • 16 de abril de 2025

 A vida inteira a gente vai trombando com "frutos do conhecimento" que nos tiram de outros "paraísos" que a gente tinha construído.

A psicanalista Melanie Klein, com seu olhar que radiografava a alma infantil e suas projeções na vida adulta, cravou uma frase que cutuca: "Toda vez que provamos o fruto da árvore do conhecimento somos expulsos de algum paraíso". A lembrança do Éden bíblico surge, claro, mas ganha um peso psicológico bem mais denso na leitura dela. Para Klein, essa expulsão não é um evento isolado lá no começo dos tempos, mas um processo que nos acompanha, grudado na nossa própria evolução como seres humanos.


Aquele "paraíso" original, na visão da psicanalista, fala daquela sensação de completude total do bebê, onde ele se sente um só com a mãe, como se o mundo girasse ao seu redor sem atrito. É um Éden particular, movido pela satisfação imediata, sem espaço para a frustração. Morder o fruto do conhecimento, nesse instante inicial, significa o baque de perceber que não é bem assim, que existe uma separação, que as coisas faltam e que nem tudo é só alegria. A mãe, antes vista como uma fada madrinha onipotente, se revela alguém à parte, com suas próprias necessidades e limites. Essa primeira dentada na maçã da realidade infantil é, sem dúvida, um chute para fora daquele paraíso de união.


Só que a sabedoria de Klein não para nessa primeira perda. A vida inteira a gente vai trombando com "frutos do conhecimento" que nos tiram de outros "paraísos" que a gente tinha construído. Cada vez que entendemos algo novo sobre nós, sobre os outros ou sobre o mundo, rola uma perda de alguma ilusão, de uma crença que nos dava segurança, de uma idealização que nos protegia.


Pensa na adolescência, por exemplo, com aquele despertar da sexualidade e a confusão dos relacionamentos. O paraíso da infância sem grandes preocupações e com as certezas da família se esvai quando a gente prova o gosto agridoce da autonomia e da responsabilidade individual. As primeiras paixões, com seus inevitáveis tombos, nos jogam para fora do paraíso daquela fantasia romântica pura.


Na vida adulta, a luta na profissão, a formação de uma família, o enfrentamento das perdas e das frustrações são tudo mordidas em frutos que nos afastam de paraísos imaginados. A busca por um bom emprego nos coloca diante da competição e da injustiça, quebrando o paraíso da meritocracia perfeita. Ter filhos nos tira daquele paraíso da liberdade sem amarras. Envelhecer nos arranca do paraíso da juventude eterna.


O que é bonito e ao mesmo tempo doloroso na visão de Klein é essa certeza de que não tem volta. Não dá para voltar para aquele Éden perdido, seja ele a união total com a mãe, a inocência da infância ou qualquer outra fantasia que a gente tenha criado. O conhecimento, mesmo quando dói, é um caminho sem retorno.


Só que essa expulsão não precisa ser só uma coisa ruim. Se aquele paraíso perdido era meio que uma bolha de ilusão e de falta de alguma coisa, a caminhada pelo conhecimento, mesmo com os perrengues e as perdas, nos leva a entender melhor a realidade e a nós mesmos. A dor de se separar da mãe no começo, por exemplo, é fundamental para a gente virar um indivíduo com suas próprias características e para conseguir ter relações mais maduras.


Então, essa frase de Klein nos faz pensar sobre como o conhecimento é uma faca de dois gumes. Ele nos tira de um lugar de conforto que, no fundo, era uma mentira, mas nos aproxima de uma verdade mais complexa e que pode nos enriquecer de verdade. Cada "expulsão" é, no fim das contas, um chamado para crescer, para se adaptar e para construir novos "paraísos" – talvez menos perfeitos, mas com certeza mais fortes e ligados à vida real. O sabor azedo da maçã do conhecimento é o preço que a gente paga por ser humano e estar sempre mudando.


/GiovaniMiguez

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