ATO POÉTICO COMO CUIDADO ESSENCIAL

Giovani Miguez • 2 de julho de 2025

O que chamo de ato poético não se resume a palavras escritas.

Quase como um segredo compartilhado, uma verdade sutil se revela nos gestos delicados e nos olhares profundos: a criação poética é um ato de cuidado. E nessa verdade que surge silenciosa, poetas cuidam ao desvendar o mundo e encontram abrigo e sustento na própria poesia que os envolve. Essa relação surge de um ponto de encontro profundo, onde os caminhos da poesia e do cuidado se cruzam, ambos buscando significado, conexão e nutrição para a vida, elevando o funcional para tocar o sensível, o ético e o estético.


Onde a poesia encontra o cuidado


O que chamo de ato poético não se resume a palavras escritas. É a poesia em ação – a essência da realidade, a beleza, e não beleza, que pulsa no mundo – expressa em cada gesto, olhar e percepção que a revela. É a busca constante por capturar, mesmo que de forma limitada, e ressignificar o real. Paralelamente, o ato de cuidado é a demonstração ativa e intencional de atenção, carinho e responsabilidade pelo bem-estar: o nosso, o do outro e também do planeta. Implica uma atitude de profunda ética e beleza, uma est(ética) que se manifesta em cada detalhe da vida.


Nesse cenário, poetas não são apenas os escritores. São quaisquer pessoas que, através de suas ações, buscam entender e expressar a poesia do mundo. Seja através da fotografia que eterniza um momento, da pintura que colore uma emoção, da música que acalma a alma, da dança que liberta o corpo ou da simples e profunda observação atenta, ele se entrega a um ato genuinamente poético. E o mundo, a própria Realidade, é a poesia em si, a fonte infinita de sentido e beleza que nutre os poetas e que eles buscam, humildemente, registrar. O objeto, a pessoa, o ambiente cuidado, são o foco, o alvo dessa atenção amorosa dos poetas-cuidadores.


Poesia que cura, ou a alquimia do registro


A ligação entre o ato poético e o ato de cuidado se manifesta de diversas formas, confirmando essa ideia central. Pensemos na atenção plena e na contemplação: apreender a poesia do mundo exige um cuidado inerente com a percepção, uma abertura para ver o sutil, o belo, o profundo no dia a dia. Ao se permitir ser tocado por essa realidade, os poetas cuidam de si, e ao registrar essa experiência, eles preservam a memória do mundo, a sua beleza passageira.


Nesse contexto, a prática de registrar algo se revela como um meio de restauração. Tal qual o "remédio" de Platão, a escrita, a fotografia, a pintura – qualquer método de perpetuar a realidade – pode ser tanto o "tóxico" que nos afasta da essência original (pois a representação nunca é idêntica ao objeto), quanto um tratamento efetivo. É um gesto de atenção que põe ordem no tumulto interior, processa as dores e viabiliza a comunicação de vivências inexplicáveis. Aqui, a leitura terapêutica e a terapia pela arte se encontram: ao criar, os artistas oferecem a si e aos outros meios para entender e controlar as emoções, para trabalhar os conflitos e descobrir novas perspectivas, em um cuidado direto com o bem-estar mental e emocional, onde a arte serve como alívio.


A essência dos artistas interage com o inconsciente, em um zelo profundo com o que não se vê. A imaginação torna-se ativa e ressoa no processo criativo, quando os artistas moldam imagens e sensações internas, integrando conteúdos e buscando, em um sentido junguiano,  a totalidade do Ser. E os sonhos — a própria matéria-prima da arte, segundo Jung e Bion — são convites para a compreensão de si e do mundo. Dar forma a essa "linguagem dos sonhos", "sonhar acordado" e transformar o informe em forma, é um ato de cuidado que organiza a mente e dá sentido aos elementos brutos da vivência.


Todo ato de cuidado possui uma dimensão inerente: é est(ética). A beleza na maneira como cuidamos — de uma planta, de uma pessoa, de uma ideia — reflete uma percepção de harmonia e adequação. Um cuidado bem executado é "belo" em sua exatidão e em sua bondade. E a ética? O cuidado implica responsabilidade, respeito, empatia e compromisso com o bem-estar. O ato poético, ao dar voz ao excluído, ao expressar a beleza no caos, ou ao provocar reflexão sobre a condição humana, exerce uma função ética poderosa, um impacto que se espalha.


Quem cuida também recebe cuidado.


A troca mútua é o coração dessa relação. Quando os artistas se entregam ao ato poético — escrevendo, fotografando ou simplesmente observando — eles estão cuidando da arte original do mundo, a Realidade, buscando capturá-la e protegê-la. Mas, nessa entrega, eles se abrem, se submetem à influência dessa mesma arte.


Ao se aprofundarem na beleza e na complexidade da realidade, ao liberar sua criatividade e ao processar suas próprias vivências através da poesia, os artistas-poetas são, eles mesmos, profundamente cuidados pela própria arte. A criação se torna um santuário, um espaço sagrado de cura e autoconhecimento. A arte os alimenta, os transforma, os reconecta consigo mesmos e com o universo em uma teia invisível, mas poderosa.


Desse modo, o gesto de se permitir ser atravessado pela poesia revela uma percepção desperta que se volta para a essência poética da vida, tentando apreendê-la e comunicá-la. E, ao realizar tal intento, o ato poético transforma-se em um gesto de atenção: atenção com o olhar que se aguça, com a lembrança que se preserva, com o íntimo que os completa, com o grupo que se identificam, e com o valor da própria vida. Nessa dedicação, nessa união entre quem cria e o que é criado, os poetas sente-se, em contrapartida, acolhidos e alimentados pela abundante habilidade de amparo que a própria poesia os oferece de bom grado; bastando a eles, aceitá-la sorvendo seu néctar ou seu fel sem se afogar, entretanto, em sua abundância.


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* Giovani Miguez é poeta e autor de 18 livros.  Às vezes arrisca crônicas, contos e outras prosas. Servidor público é graduado em Gestão Pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, especialista em Sociologia e Psicanálise,  mestre e doutor e Ciência da Informação. Nascido em Volta Redonda (RJ), hoje reside na cidade do Rio de Janeiro.  Na sua poesia, explora a expressão e reflexão existencial. Ora lírico, ora político, ora científico, mas sempre est(ético), o poeta segue sendo profundo em suas generalidades. | @giovanimiguezz

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