Poeta ou doutor: breve anamnese intelectual
A tese, coitada, levou sete longos anos para se concretizar, embebida na torrente poética que me invadia.
"Poeta ou doutor?", pergutaram-me. A resposta brotou sem hesitação, um rio represado que finalmente encontra o mar: poeta. A vida acadêmica, confesso, vestiu-se de contingência, um caminho trilhado pelas circunstâncias. Mas a poesia... ah, a poesia foi um grito entalado na garganta, uma imposição da alma que tentei em vão silenciar. Enterrei-a sob a falsa promessa de que não me levaria a lugar algum, pobre iludido.
Até que a represa cedeu. A turbulência moral e emocional daquele tempo foi o solo fértil para o renascimento. A poesia transbordou, e em cada verso, um sangramento. Curiosamente, a aridez da pesquisa, o rigor do mestrado, tocaram de alguma forma essa veia pulsante. Contingência e imposição estética dançaram juntas, um pari passu inesperado. A tese, coitada, levou sete longos anos para se concretizar, embebida na torrente poética que me invadia. Dezenas de cadernos, milhares de poemas florescendo ao lado do fazer científico. Hoje, a clareza me veste: a travessia do doutorado me fez mais poeta, a ciência foi apenas a margem do rio. Minha poética documental, essa busca incessante por registrar a alma, confirmou a tese primordial: sou um poeta.
E o amor fati... como não abraçá-lo em meio a este mundo de pixels fugazes? Ousar falar de destino em sua totalidade soa anacrônico, um desafio à sinfonia frenética do agora. Mas eu ouso. E se valeu a pena? A agonia, por vezes, quase me afogou. A poesia foi minha boia, minha eulalia, mas também meu silêncio profundo. O ato de poetizar me refez, talvez não melhor, mas certamente mais resignado diante do inevitável. Fiz desse "desatino" um destino, uma forma tortuosa, quem sabe, de amar cada aresta da existência. Desde os primeiros rabiscos, declarei-me um "animal poético, existencialmente est(ético)", grafando a ética entranhada na beleza. E sigo fiel a esse projeto, essa teimosa busca em versos.
Coleciono sonhos? Sim, utopias talvez, com o receio de que se concretizem em distopias. Dívidas? Inúmeras com a vida prática, com o fio tênue que me liga à realidade. Vivo aprisionado entre o sonho poético e a dúvida cruel: serei capaz de viver plenamente essa poesia que me salvou, sem naufragar em um outro mar, um mar de afetos que transforma a boia em âncora?
Nietzsche foi um farol, mas Jung acendeu a primeira faísca. Zubiri sedimentou o pensamento. E depois, um banquete de vozes: Nise, Cecília, Cora, Bion, Deleuze, Derrida... uma indisciplina fecunda. Os marginais dos 70, com sua crueza e beleza, também me tocaram fundo. Agora, volto o olhar para a América Latina, para as vozes silenciadas, uma dívida histórica a ser paga com a escuta atenta.
E a preguiça... ah, o elogio à preguiça em tempos de produtivismo voraz. Tornou-se luxo, quase heresia. O trabalho incessante, a métrica castradora, invadiram a ciência, a literatura, a própria alma. Contam-se artigos, não a profundidade. Livros lidos, não a experiência da leitura. Zumbis idolatrando o (des)envolvimento, esquecendo o homo curare. A tecnologia, em vez de meio, tornou-se fim, nos empurrando para um abismo ontológico. A "boa preguiça" é o respiro, o reencontro com o ócio criativo, com a humanidade submersa. A ponte para atravessar esse abismo é o cuidado. A sociedade futura precisa ser a sociedade do cuidado, e a poesia, eu acredito, será a argamassa dessa construção.